Por que Estudamos Cálculo Numérico?

Por que Estudamos Cálculo Numérico?

É uma necessidade científica moderna?


O cálculo numérico corresponde a um conjunto de ferramentas ou métodos usados para se obter a solução de problemas matemáticos de forma aproximada. Esses métodos se aplicam principalmente a problemas que não apresentam uma solução exata, portanto precisam ser resolvidos numericamente. Nosso objetivo é mostrar a aplicação do cálculo numérico em várias áreas, por meio de exemplos, de maneira que poderemos decidir se este é mesmo uma necessidade científica moderna.


EXEMPLO 1: MÉTODO DE INTEGRAÇÃO E O CÁLCULO DE CEMENTAÇÃO


O tratamento da cementação é o tratamento termoquímico, muito utilizado na indústria metalúrgica, que consiste em se introduzir carbono na superfície do aço pelo mecanismo de difusão atômica (que é o transporte de matéria por meio de movimento atômico) com o objetivo de se aumentar a dureza e resistência superficial do material.


O tratamento termoquímico de cementação é usado para aumentar a dureza do material.



Esse processo envolve o emprego da seguinte função:


$$C(x,t)=C_{s}-(C_{s}-C_{0})erf(\frac{x}{2\sqrt{Dt}})$$


Na qual $C(x,t)$ é a concentração de carbono num determinado ponto $x$, para um certo tempo $t$ de cementação (% em peso); $C_{0}$ é a concentração inicial e $C_{s}$ é a concentração na superfície da peça; e $D$ é o coeficiente de difusão do carbono no aço em $m^{2/s}$.

A função $erf(\frac{x}{2\sqrt{Dt}})$ é a integral normalizada, ou função de erro de Gauss, definida como:

$$erf(Z)=\frac{2}{\sqrt{\pi}}\int_{0}^{Z}e^{-y^{2}}dy$$

Em que $erf(\frac{x}{2\sqrt{Dt}})$ é a variável $Z$.


Mas o problema é que a integral da função erro é uma função que não é possível exprimir as suas primitivas por meio do Teorema Fundamental do Cálculo. Em outras palavras, a função anterior não tem primitiva.

A solução encontrada na engenharia é tabelar seus valores por meio de aproximações. Isso pode ser feito com simplicidade por meio do método de Simpson para integrais.

O método de Simpson é uma ferramenta para obter uma aproximação numérica de uma integral $\int{a}^{b}dx$. Este método baseia-se em aproximar a integral definida pela área sob arcos de parábola que interpolam a função, como mostrado no gráfico abaixo.


Aproximação de uma função pela parábola dada por um polinômio interpolador de grau 2.

Por exemplo, seja a função $erf(Z)=\frac{2}{sqrt{\pi}}\int{0}^{Z}e^{-y^{2}}dy$ , vamos calcular para o valor $Z=0,5$, e comparar com uma tabela preestabelecida de valores dessa função.


$Z$

$erf(Z)$

$0$

$0$

$0,05$

$0,0564$

$0,1$

$0,1125$

$0,2$

$0,2227$

$0,5$

$0,5205$

Tabela padrão de valores da função $erf(Z)$



Considerando que a aproximação dada pelo método de Simpson é a seguinte:

$$\int{\alpha}^{\beta}f(x)dx \approx \frac{h}{3}[f(x_{0})+4f(x_{1})+f(x_{2})]$$

Onde $h=\frac{\beta - \alpha}{2}$.

Então, escolhendo os pontos: $x_{0}=0$, $x_{1}=0,025$, $x_{2}=0,05$, temos os seguintes resultados:


$i$

$x_{i}$

$e^{-x_{i}^2}$

$0$

$0$

$1.12837916709551$

$1$

$0,025$

$1.12767415046000$

$2$

$0,5$

$1.12556174242602$


Portanto:

$$erf(0,05)=\frac{2}{\sqrt{\pi }}\int_{0}^{0,05}e^{-y^{2}}dy$$

$$\approx 1120(1,12837916709551+4,51069660182691+1,12556174242602)$$

$$=0,056371979261237$$

Comparando com o valor tabelado, podemos perceber que o valor calculado é uma excelente aproximação.


EXEMPLO 2: AUTOVALOR DOMINANTE


Considere o movimento horizontal do conjunto massa-mola mostrado na figura abaixo:



As deflexões horizontais $x_{1}$ e $x_{2}$ são medidas relativamente à posição de equilíbrio estático. As molas possuem rigidez $k_{1}$, $k_{2}$ e $k_{3}$, que são as forças requeridas para estender ou comprimir cada mola de uma unidade de comprimento. Assim temos as seguintes equações de movimento:

$$m_{1}\frac{d^{2}x_{1}}{dt^{2}}=-k_{1}x_{1}+k_{2}(x_{2}-x{1})$$

$$m_{2}\frac{d^{2}x_{2}}{dt^{2}}=-k_{2}(x_{1}-x_{2})+k_{3}x_{2}$$

Se $\begin{bmatrix} x_{1}\\x_{2} \end{bmatrix}$ é o vetor de deflexão, então podemos reescrever as equações acima na forma:

$$\frac{d^{2}x_{1}}{dt^{2}}=Ax$$

Uma solução desta equação diferencial é dada por:

$$x=ve^{iwt}$$

Onde $v$ é um vetor e $e^{iwt}=cos(wt)+isin(wt)$, e $i$ é o número imaginário. Aqui temos um problema de autovalor do tipo $Ax=\lambda x$, onde $\lambda = w^{2}$ . E os possíveis valores de $w$ são as frequências naturais que o sistema pode assumir.

Para resolver esse problema numericamente, podemos utilizar o método de potenciação para encontrar o autovalor dominante, que é um procedimento iterativo para produzir uma sequência de escalares que converge para o autovalor da matriz. O método consiste em calcular $Z_{k+1}=AZ_{k}$ e iterar até que $\frac{\lambda_{k+1}-\lambda_{k}}{\lambda_{k+1}}$, para $\varepsilon >0$.

Por exemplo, Seja $\begin{bmatrix}1&1\\2&0\end{bmatrix}$ e $\varepsilon=0,005$ encontre o auto valor dominante pelo método de potenciação.

Escolhendo $Z_{0}=\begin{bmatrix}1\\0\end{bmatrix}$, normalizando temos $Y_{0}=\begin{bmatrix}1\\0\end{bmatrix}$. Desta forma temos:

$Z_{1}=AZ_{0}=\begin{bmatrix}1&1\\2&0\end{bmatrix}\begin{bmatrix}1\\0\end{bmatrix}$, e, portanto: $Z_{1}=\begin{bmatrix}1\\2\end{bmatrix}$

$\lambda_{0}=Z_{1}{}^{t}\textrm{Y}_{0}=$ $\begin{bmatrix}1\\0\end{bmatrix}\begin{bmatrix} 1&0\end{bmatrix}=1$


Continuando o algoritmo:

$Z_{2}=AZ_{1}=\begin{bmatrix}1 & 1 \\ 0 & 2 \end{bmatrix}\begin{bmatrix}1 \\ 2\end{bmatrix}$, portanto, $Z_{2}=\begin{bmatrix}3\\4\end{bmatrix}$.


Devemos normalizar $Z_{1}$ para encontrar $Y_{1}$, ou seja: $Y_{1}=\begin{bmatrix}\frac{1}{5}\\\frac{2}{5}\end{bmatrix}$

 

$$\lambda_{1}=Z_{2}._{}^{t}\textrm{Y}_{1}=\begin{bmatrix}3\\4\end{bmatrix}\begin{bmatrix}\frac{1}{5}&\frac{2}{5}\end{bmatrix}=2,2$$


$k$

$Z_{k}$

$_{}^{t}\textrm{Y}_{k}$

$\lambda_{k}$

$\frac{\lambda_{k+1}-\lambda_{k}}{\lambda_{k+1}}$

0

$\begin{bmatrix}1\\0 \end{bmatrix}$

$\begin{bmatrix} 1 & 0 \end{bmatrix}$

1

1

$\begin{bmatrix}1\\2 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{5}\begin{bmatrix} 1 & 2 \end{bmatrix}$

2,2

0,545

2

$\begin{bmatrix}3\\4 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{13}\begin{bmatrix} 3 & 2 \end{bmatrix}$

2,076

0,059

3

$\begin{bmatrix}5\\6 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{61}\begin{bmatrix} 5 & 6 \end{bmatrix}$

1,885

0,101

4

$\begin{bmatrix}11 \\ 10 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{221}\begin{bmatrix} 11 & 10 \end{bmatrix}$

2,040

0,075

5

$\begin{bmatrix}21 \\ 22 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{925}\begin{bmatrix} 21 & 22 \end{bmatrix}$

1,975

0,032

6

$\begin{bmatrix}43 \\ 42 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{3613}\begin{bmatrix} 43 & 42 \end{bmatrix}$

2,011

0,017

7

$\begin{bmatrix}85\\86 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{14621}\begin{bmatrix} 85 & 86 \end{bmatrix}$

1,994

0,008

8

$\begin{bmatrix}171\\170 \end{bmatrix}$

$\frac{1}{58141}\begin{bmatrix} 171 & 170 \end{bmatrix}$

1,997

0,001


Fazendo o teste de convergência para a ultima iteração temos $\frac{1,997−1,994}{1,997}=0,001<0,005=\varepsilon$. Assim, temos que o autovalor dominante se aproxima de $2$ a medida que $k \to \infty $. Ou que para um erro $\varepsilon=0,005$ temos que $\lambda= 1,997$.

Desta forma, se considerássemos um sistema de duas molas da matriz $A$, teríamos a frequência natural $w=1,997 rad/s$.


EXEMPLO 3: ERROS E SUAS PROPAGAÇÕES


As grandezas físicas são determinadas experimentalmente por meio de aparatos instrumentais e equipamentos próprios para essa tarefa. Porém, por mais preciso que seja o equipamento, há sempre uma incerteza gerada pelas limitações do aparelho utilizado e também do operador.

Para se obter e manipular os dados experimentais com a maior precisão possível, o valor da grandeza medida e o seu erro devem ser considerados. Essa tarefa exige um tratamento adequado dos dados estudados pela teoria dos erros.

Um exemplo para verificar a importância da aplicação do cálculo do erro encontra-se no trágico acontecimento, em fevereiro de 1991, durante a guerra do Golfo, em que uma falha na detecção de um míssil Scud iraquiano, causada por um erro de arredondamento no radar Patriot, causou a morte de 28 militares norte-americanos e feriu outros 98.

O Patriot é um sistema de defesa com mísseis aéreos das tropas norte-americanas, que consiste em um radar com base terrestre e um míssil usados para localizar e perseguir os alvos. O sistema de radar registrava o tempo 10 vezes por segundo, em um sistema de 24 bits, e o software convertia esse tempo para um número binário. Entretanto, o número $\frac{1}{10}$ não tem representação inteira em base 2, desta forma precisava ser aproximado dessa forma:

$$0,1_{10} \approx .00011001100110011001100_{2}$$

$$=2^{-4}+2^{-5}+2^{-8}+2^{-9}+2^{-12}+2^{-13}+2^{-16}+2^{-17}+2^{-20}+2^{-21}$$

$$=\frac{209715}{2097152}$$

Se subtrairmos esse valor do original, resulta no seguinte erro:

$$erro=\frac{1}{10}-\frac{209715}{2097152}\approx 9,5\times10^{-8}s$$

Além disso, o erro se acumulou após 100 horas de funcionamento ininterrupto da máquina. Ao fim desse tempo, o erro acumulado foi de:

$$100\times 60\times 60\times 10\times (\frac{1}{10}-erro)=\frac{653}{1900}\approx 0,34332275390625s$$

Como, na ocasião, o míssil Scud tinha uma velocidade aproximada de $7200 km/h$, o que corresponde a um deslocamento na posição da região de procura do radar na ordem de $687 m$ metros o que conduziu à não detecção do míssil iraquiano.



 

CONCLUSÃO


O cálculo numérico corresponde a um conjunto de ferramentas e métodos usados para se obter a solução de problemas matemáticos, muitos deles de forma aproximada. Esses métodos se aplicam principalmente a problemas que precisam ser resolvidos numericamente. Vimos alguns exemplos da importância dos seus métodos na engenharia, indústria e até na defesa, como é o caso da consequência de uma falha de acurácia nos cálculos de propagação de erros. Com isso, concluímos que o cálculo numérico é sim uma necessidade cientifica moderna, e uma poderosa aliada na aplicação dos cálculos em situações reais.



REFERÊNCIAS


  • MATOS, José. Erros de matemática podem levar ao desastre. GAZETA DE MATEMÁTICA. Sociedade Portuguesa de Matemática. 0171, pág. 45-46, 01/11/2013.

  • RUGGIERO, Maria A. Gomes; LOPES, Vera Lúcia da Rocha. Cálculo Numérico: Aspectos Teóricos e Computacionais. 2ª ed. São Paulo: Makron Books, 1997.

  • SHOKRANIAN, Salahoddin. Tópicos em Métodos Computacionais. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2009.

  • KILHIAN, Kleber. Função Erro e Outras Funções Relacionadas. O Baricentro da Mente, 24 de Setembro de 2013. Disponível em: http://obaricentrodamente.blogspot.com.br/2013/04/a-funcao-erro-e-outras-funcoes.html. Acesso em: Nov. 2016

     

     

    QUER CITAR ESTE ARTIGO NO SEU TRABALHO? VOCÊ PODE USAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:

    CASTRO, Mendelssohn Aguiar de Lima. Por Que Estudamos Cálculo Numérico? É uma necessidade científica moderna? Blog Matdriver: Matemática e Tecnologia. Brasília, mar. 2021. Disponível em: https://matdriver.blogspot.com/2021/03/porque-estudamos-calculo-numerico-e-uma.html. Acessado em________.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CÔNICAS - EXERCÍCIOS

LOGARITMOS - EXERCÍCIOS